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Política Brasília

Em projeto para uso de terras, governo ignorou veto da Funai a áreas de povos indígenas isolados

Órgão fez duas recomendações para impedir mineração, exploração de petróleo e instalação de hidrelétricas em terras em isolamento
Índios participam de encontro no Xingu: governo federal quer liberar atividades econômicas em reservas Foto: Ricardo Moraes / Reuters
Índios participam de encontro no Xingu: governo federal quer liberar atividades econômicas em reservas Foto: Ricardo Moraes / Reuters

BRASÍLIA — O governo ignorou duas recomendações da Fundação Nacional do Índio ( Funai ) e abriu uma brecha que possibilita a mineração, a exploração de petróleo e a instalação de hidrelétricas em terras indígenas nas quais há registro da presença índios isolados, considerados os mais vulneráveis do país. As recomendações constam de uma troca de correspondências à qual O GLOBO teve acesso ocorrida entre diferentes ministérios que fazem parte do grupo de trabalho que elaborou a minuta de um projeto de lei sobre o assunto.

A regulamentação da mineração em terras indígenas foi uma das bandeiras de campanha do presidente Jair Bolsonaro . No último sábado, O GLOBO revelou que o governo federal pretende enviar ao Congresso este ano um projeto que prevê também a possibilidade de outras formas de exploração desses territórios, incluindo petróleo e gás e construção de hidrelétricas .

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De acordo com a Funai, o Brasil tem hoje 114 registros de índios isolados ou de recente contato. Desse total, 28 já foram confirmados. Em 21 agosto de 2019, o Programa de Parcerias e Investimentos (PPI), ligado à Casa Civil e integrante do grupo de trabalho sobre o projeto do governo federal, sugeriu que a exploração de recursos ficaria vedada apenas no perímetro identificado pela Funai como sendo aquele onde vivem as comunidades isoladas. No restante da terra indígena, a exploração desses recursos poderia ocorrer desde que autorizada pelo Congresso .

“Cabe à Funai identificar as comunidades isoladas e determinar, dentro da terra indígena, o seu perímetro de ocupação e uso, no qual fica vedada a pesquisa e a lavra de recursos minerais e hidrocarbonetos e o aproveitamento de potenciais de energia hidráulica”, disse o PPI na sugestão à minuta.

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Em 17 de setembro, no entanto, a Funai se manifestou contra a proposta feita pelo PPI e sugeriu uma redação diferente: “É vedada a exploração de recursos de que trata esta lei em Terras Indígena (sic) com presença de povos indígenas isolados”.

Pela redação sugerida pela Funai, a exploração de recursos ficaria vedada em toda a extensão das terras indígenas em que houvesse a presença de povos isolados, e não só dentro de um perímetro delimitado por ela.

“O disposto nesta lei aplica-se às terras tradicionalmente ocupadas pelos índios de que trata o art. 231 da Constituição, à exceção das terras indígenas em que haja registro, por parte da Funai, de comunidades isoladas”, reforçou a Funai em outro trecho.

Apesar das recomendações da Funai, prevaleceu a posição do PPI na minuta mais recente do projeto.

Falta de diálogo

Para a advogada da ONG Instituto Socioambiental (ISA) Juliana Batista, o que chama a atenção na troca de comunicações do grupo de trabalho é a forma como o governo ignorou a posição da Funai sobre os isolados.

— Causa espanto que recomendações técnicas do órgão responsável pela questão indígena sejam ignoradas dessa forma. O governo tem dialogado com vários segmentos da sociedade, mas não conversa com as instâncias que representam os índios — afirmou Batista.

Questionado, o Ministério de Minas e Energia disse que as informações sobre o tema têm de ser fornecidas pela Casa Civil, que estaria “analisando este assunto”. A Casa Civil disse que o “tema está em discussão no governo federal e ainda não existe texto fechado a respeito”. A Funai repetiu a resposta dada pela Casa Civil.

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Para o líder indígena Beto Marubo, representante da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja), a proposta do governo coloca os isolados em risco ainda maior.

— Não adianta apenas proibir a atividade dentro de um perímetro. Imagine que eles autorizem a mineração em trecho de rio fora desse perímetro. Se o rio cortar a área dos isolados, eles serão impactados diretamente. O governo não parece minimamente interessado no bem-estar dos índios. — afirmou Marubo.

O ex-sertanista da Funai José Meirelles, que trabalhou por quase duas décadas com índios isolados, a possibilidade de haver mineração, exploração de petróleo ou hidrelétricas em áreas próximas àquelas habitadas por índios isolados tem potencial para resultar em desastre.

— Essa alternativa do governo é para legalizar o que hoje é ilegal. Em todos os locais onde a mineração chegou às terras indígenas, o resultado foi um desastre. E como é que o governo vai fazer para manter a segurança dos isolados dentro do perímetro estabelecido pela Funai? Vai colocar uma cerca na selva? — indaga Meirelles.

Meirelles diz que a delimitação de um perímetro de proteção aos isolados dificilmente funcionaria porque boa parte deles compartilha terras com índios não-isolados e porque eles, em geral, são nômades e estão em constante movimento pela mata.