Entenda possíveis caminhos para eventual criminalização do presidente Bolsonaro

No Brasil, vias de responsabilização precisam do aval da Câmara, enquanto processos internacionais demandam provas robustas

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Mogi das Cruzes (SP)

Em meio ao agravamento da pandemia da Covid-19 no Brasil, pedidos de impeachment e requerimentos de investigação contra o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) se avolumam na Câmara dos Deputados e na Procuradoria-Geral da República, respectivamente.

Além dessas vias internas, desde o começo da pandemia organizações já protocolaram denúncias junto ao Tribunal Penal Internacional para que o presidente seja julgado pela corte por crimes contra a humanidade e genocídio. Além disso, provocaram ONU e Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que podem impor sanções ao Brasil.

Especialistas em direito ouvidos pela Folha avaliam que as condutas de Bolsonaro podem configurar crimes comuns previstos no Código Penal, mas para que exista uma ação penal junto ao STF (Supremo Tribunal Federal) é preciso uma denúncia do procurador-geral da República, Augusto Aras, e o aval da Câmara.

No caso da pandemia, por ser uma questão que afeta a coletividade, não é possível apresentar uma queixa-crime ao Supremo, porque este caminho é válido apenas quando há uma pessoa afetada diretamente, por exemplo, no caso de crimes contra a honra.

Segundo os especialistas, um possível caminho é que a crise sanitária e socioeconômica no país e a consequente pressão da opinião pública forneçam o elemento político que falta para que um processo de impeachment seja pautado.

No último dia 24, quando o Brasil superou a marca de 300 mil vítimas da Covid-19, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL) —que tem a prerrogativa de pautar o impeachment— subiu o tom e disse que se não houver correção de rumo, a crise pode resultar em "remédios políticos amargos" a serem usados pelo Congresso, alguns deles fatais.

Nesta quarta-feira (31), após a demissão conjunta dos comandantes das Forças Armadas em consequência da demissão do ministro da Defesa, general Fernando Azevedo, líderes de oposição na Câmara e no Senado protocolaram um novo pedido de impeachment por tentativa de interferência na instituição e "ameaça à democracia".

Entenda quais são os caminhos possíveis para responsabilização do presidente.

Quais condutas de Bolsonaro na pandemia apontam indícios de crimes comuns previstos pelo Código Penal? No último dia 24, a OAB nacional protocolou uma representação na Procuradoria-Geral da República para que o presidente seja denunciado ao STF por crimes previstos nos artigos 132 (perigo para a vida ou saúde de outrem), 268 (infração de medida sanitária preventiva), 315 (emprego irregular de verbas ou rendas públicas) e 319 (prevaricação) do Código Penal.

As mesmas condutas, além do artigo 257 (subtração, ocultação ou inutilização de material de salvamento), foram apontadas em uma representação apresentada por ex-procuradores em janeiro. Em outra, apresentada no mesmo mês pela AJD (Associação Juízes pela Democracia), são citados três dos crimes da representação da OAB.

Presidente da AJD, a juíza do trabalho e professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul Valdete Souto Severo diz que a representação teve como base o colapso na rede de saúde em Manaus e a falta de oxigênio em unidades hospitalares que levou pacientes à óbito. Desde então, ela afirma que Bolsonaro tem reiterado condutas contra a saúde da população.

A advogada criminalista Marina Coelho Araújo, presidente do IBCCrim (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais), analisa que o caso da capital do Amazonas, além do desrespeito do presidente às medidas de distanciamento social e a propaganda de medicamentos sem comprovação científica apontam indícios para caracterização dos crimes.

“Não é que a pandemia foi criada pelo governo, mas a condição estrutural do Brasil hoje é resultado das omissões e das ações desgovernadas que foram tomadas pelo Executivo ao longo desses meses”, diz.

Além disso, uma análise jurídica feita pelo Centro de Pesquisas e Estudos de Direito Sanitário (Cepedisa) da Faculdade de Saúde Pública da USP e pela Conectas de 3.049 normas editadas durante a pandemia em 2020 concluiu que houve uma estratégia institucional de propagação do vírus e aponta a necessidade de discutir a configuração de crimes de responsabilidade, contra a saúde pública e contra a humanidade.

Professora titular da USP e uma das coordenadoras do estudo, Deisy Ventura diz que há indícios de delitos cometidos não só pelo presidente, mas por outros agentes federais em um conjunto de ações, que inclui a edição de normas, obstrução a respostas locais, atraso em repasses, incitação ao desrespeito e uma campanha constante contra governadores e prefeitos, além de propaganda contra a saúde pública.

“O que o nosso estudo demonstra é a existência de um plano sistemático de disseminação do coronavírus que reflete a opção pela imunidade coletiva por contágio. É essa opção que nós consideramos que pode constituir uma série de crimes."

Como funciona o processo contra o presidente da República por crimes comuns? Pela prerrogativa de foro dada pelo cargo, o presidente só pode ser julgado pelo Supremo. Para que isso ocorra, é necessária a apresentação de uma denúncia pelo procurador-geral da República, Augusto Aras, à corte, que precisa do aval de no mínimo 342 deputados federais. Caso a denúncia não seja aceita, o presidente poderá ainda responder ao processo após deixar o cargo.

O advogado Pierpaolo Bottini explica que não seria possível apresentar uma queixa-crime contra o presidente por condutas durante a pandemia, uma vez que os crimes apontados afetam a população de forma coletiva, logo, a presentação deve ser feita via Ministério Público. A queixa-crime caberia para casos em que o indivíduo é diretamente afetado, ppor exemplo, em crimes contra a honra.

Valdete Severo critica a falta de ação por parte de Aras diante das representações já feitas. “Há um alinhamento completo na postura do procurador-geral da República com o presidente da República e portanto ele age quase como um advogado pessoal, e não como um procurador da República.”

O advogado criminalista Augusto Botelho, que é conselheiro e sócio-fundador do IDDD (Instituto de Defesa do Direito de Defesa), também não acredita em uma denúncia de Aras, a não ser que surja um fato completamente novo.

“Se tivesse a iniciativa que deveria ter, ele já deveria ter feito, porque esses crimes deveriam ter sido investigado há bastante tempo, quando o presidente em mais de uma vez colocou em risco a população, incentivou a aglomeração, aglomerou e esteve em público sem máscara.”

Marina Araújo discorda que exista alguma omissão por parte de Aras. No caso de Manaus, o procurador-geral chegou a instaurar uma apuração preliminar para verificar a conduta de Bolsonaro e do então ministro da Saúde, Eduardo Pazuello.

“É lógico que o cargo dele envolve muita questão política e que ele pode entender o melhor momento para fazer isso [denunciar], mas que ele está comprometido a não fazer, não acredito”, diz.

A Câmara é comandada por Arthur Lira, hoje aliado de Bolsonaro, a quem cabe a prerrogativa de abrir um processo de impeachment. Essa via ainda é possível? Especialistas avaliam que já foi preenchido o requisito jurídico para embasar um processo de afastamento do presidente, ou seja, indícios de que Bolsonaro violou a Constituição e a Lei dos Crimes de Responsabilidade (1.079/50).

Um levantamento feito pela Folha mostrou 23 atos ou declarações do presidente que poderiam ser usados para embasar um pedido de impeachment.

Restaria o componente político para a abertura do processo, que pode ser dado pelo agravamento da pandemia.

Augusto Botelho e Valdete Severo avaliam que a pressão por parte da opinião pública e da imprensa pode refletir no Congresso e mudar a postura de Lira e dos demais integrantes do bloco de partidos do chamado centrão, que dá sustentatação à base aliada do presidente no Congresso.

“Mesmo tendo na presidência da casa um suposto aliado da Presidência, este aliado não está alheio aos anseios e à pressão da sociedade e da imprensa”, diz o advogado. Botelho destaca ainda a pressão exercida pelo mercado, como a carta em que economistas, banqueiros e empresários cobram ações diante da pandemia.

Além dela, outro elemento veio com a crise nas Forças Armadas gerada após a demissão do ministro da Defesa, o general Fernando Azevedo, na última segunda-feira (29), que levou à saída conjunta dos comandantes Edson Leal Pujol (Exército), Ilques Barbosa (Marinha) e Antônio Carlos Bermudez (Aeronáutica).

Ao protocolarem um novo pedido de impeachment contra o presidente, os líderes de oposição na Câmara e no Senado afirmaram que Bolsonaro tenta controlar e utilizar politicamente o Exército, durante a pandemia.

Uma vez pautado pelo presidente da Câmara, o processo de impeachment precisa do aval de 342 deputados. Depois disso, para ser instaurado o processo, é preciso aprovação por maioria simples numa sessão com no mínimo 41 dos 81 senadores. Ao final, para que o presidente perca o mandato, é preciso o voto de 54 senadores.

O presidente pode ser responsabilizado na esfera internacional? Em quais instâncias? A professora Deisy Ventura, que é doutora e livre-docente em direito internacional, explica que Bolsonaro só pode ser processado individualmente pela jurisdição nacional e internacional.

Isso significa que, se esgotados os recursos internos ou quando não há possibildade de julgamento no próprio país, em virtude de conflitos, o presidente só pode ser punido pelo Tribunal Penal Internacional, criado pelo Estatuto de Roma para julgar crimes de genocídio, contra a humanidade e de guerra.

“Não há possibilidade de investigação de conduta criminosa de agentes públicos nem no Conselho de Direitos Humanos da ONU e nem no Sistema Interamericano. O que o sistema certamente fará é investigar a responsabilidade do Estado brasileiro e isso é muito importante”, diz.

No caso do TPI, a denúncia apresentada em 2020 contra o presidente por condutas na pandemia foi temporariamente arquivada. Deisy Ventura diz que isso, porém, não quer dizer que não há crime contra a humanidade ou genocídio.

“Significa simplesmente que o tribunal não dará continuidade àquela investigação porque o tribunal tem critérios estritos sobre o que ele tem capacidade de investigar ou não”, diz.

Reportagem da Folha mostrou que essa corte internacional recebe de 500 a 900 requisições por ano, das quais mais de 90% são descartadas.

O professor de direito constitucional da PUC-SP Pedro Serrano, membro da ABJD (Associação Brasileira de Juristas pela Democracia), afirma que um obstáculo para que isso ocorra é a falta de documentação, por isso, ele defende a criação de uma CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) no Congresso para reunir provas sobre condutas e listar os responsáveis.

“No campo filosófico político e moral, que acaba influenciando a interpretação das normas jurídicas, Auschwitz esteve para o exercício do poder político em tempos de guerra como Manaus está para o exercício do poder político em questões sanitárias”, diz.

Para Serrano, além de apresentar denúncias junto ao TPI, é preciso uma mobilização para que a mídia internacional compreenda as violações cometidas no Brasil durante a pandemia, o que acabaria por influenciar os julgadores da corte.

Já na avaliação de Botelho, é pouco provável que uma denúncia seja aceita pelo tribunal, mas que denúncias podem refletir em boicotes e sanções econômicas ao Brasil, que também são uma via de pressão.

Marina Araújo se diz cética sobre essas possibilidades de criminalização e pressão por vias internacionais, algo que afirma que só deve ser buscado quando esgotados os recursos no país. “Ainda tem bastante caminho interno para seguir."

CAMINHOS PARA RESPONSABILIZAÇÃO DO PRESIDENTE

  • Crimes comuns

Representações apresentadas à PGR apontam indícios de prática dos seguintes delitos do Código Penal:

Art. 132: perigo para a vida ou saúde de outrem
Pena: detenção, de três meses a um ano, se o fato não constitui crime mais grave.

Art. 257: subtração, ocultação ou inutilização de material de salvamento
Pena: reclusão, de dois a cinco anos, e multa

Art. 268: infração de medida sanitária preventiva
Pena: detenção, de um mês a um ano, e multa

Art. 315: emprego irregular de verbas ou rendas públicas
Pena: detenção, de um a três meses, ou multa

Art. 319: prevaricação
Pena: detenção, de três meses a um ano, e multa.

Como funciona o processo? O presidente deve ser denunciado pelo procurador-geral da República, Augusto Aras. Para ser julgado pelo Supremo, porém, é necessário o aval de 342 deputados federais

  • Impeachment

Como funciona o processo? O processo deve ser pautado pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (PL-AL). São necessários 342 votos de deputados para que o processo seja encaminhado ao Senado, responsável pelo julgamento. Nesta Casa, para instaurar o processo, é preciso aprovação por maioria simples numa sessão com no mínimo 41 dos 81 senadores. E 54 votos para que o presidente perca o mandato.

  • Denúncias internacionais

O presidente só pode ser criminalizado individualmente por suas condutas pelo Tribunal Penal Internacional, criado pelo Estatuto de Roma. Reportagem da Folha mostrou que a corte recebe de 500 a 900 requisições por ano, das quais mais de 90% são descartadas

Erramos: o texto foi alterado

Versão anterior da reportagem afirmou que eram necessários 41 votos para instauração de processo de impeachment no Senado. O número refere-se ao quórum mínimo da sessão, e a instauração é feita por maioria simples. O texto foi corrigido.

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