Discurso de Bolsonaro não reflete ações do governo; veja checagens e contextualizações

Presidente prometeu duplicar recursos e fez apelo por mais contribuições internacionais

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São Paulo e BAURU (SP)

O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) discursou, nesta quinta-feira (22), na Cúpula de Líderes sobre o Clima convocada pelo líder americano, Joe Biden.

O brasileiro teve que esperar mais de uma hora e meia para fazer seu pronunciamento. Antes dele, numa lista elaborada pelos americanos, discursaram quase duas dezenas de líderes, entre os quais os governantes de China, Índia, Rússia, França e Argentina.

O presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, durante Cúpula de Líderes sobre o Clima - Marcos Correa/Presidência da República - 22.abr.21/Reuters

Bolsonaro prometeu duplicar os recursos para a fiscalização ambiental, procurou destacar o Brasil na "vanguarda do enfrentamento do aquecimento global" e fez um apelo por contribuições internacionais, na linha do que vem defendendo o ministro Ricardo Salles (Meio Ambiente).

A Folha fez uma checagem do discurso do presidente, incluindo a contextualização em alguns trechos.

Senhores Chefes de Estado e de Governo, Senhoras e Senhores,

Agradeço o convite para participar desta Cúpula de Líderes.

Historicamente, o Brasil foi voz ativa na construção da agenda ambiental global. Renovo, hoje, essa credencial, respaldada tanto por nossas conquistas até aqui quanto pelos compromissos que estamos prontos a assumir perante as gerações futuras.

Como detentor da maior biodiversidade do planeta e potência agroambiental, o Brasil está na vanguarda do enfrentamento ao aquecimento global1. Ao discutirmos mudança do clima, não podemos esquecer a causa maior do problema: a queima de combustíveis fósseis ao longo dos últimos dois séculos.

1Embora o Brasil realmente seja considerado o país com a maior biodiversidade do mundo —Taxonômico da Fauna do Brasil aponta 116 mil espécies, o que representa 9% da fauna mundial— isso não se reflete no compromisso do governo com o meio ambiente. O Brasil liderou em 2020 o ranking mundial de desmatamento. O país concentrou mais de um terço da superfície de florestas virgens devastadas no planeta, cerca de 1,7 milhão de hectares, segundo o relatório Global Forest Watch, divulgado pelo World Resources Institute.

O Brasil participou com menos de 1% das emissões históricas de gases de efeito estufa2, mesmo sendo uma das maiores economias do mundo3. No presente, respondemos por menos de 3% das emissões globais anuais4.

2 Segundo o Climate Watch, plataforma do World Resources Institute, o Brasil foi responsável por 4,3% das emissões no acumulado total da série histórica, que vai de 1990 a 2018 e inclui emissões de gases de efeito estufa por mudança no uso da terra e silvicultura (LUCF, na sigla em inglês); já na série histórica que começa em 1850 e vai até 2018, mas não inclui emissões por LUCF, o Brasil foi responsável por 1,7% das emissões.

3 Com um PIB de US$ 1,84 trilhão em 2019, de acordo com dados do Banco Mundial, o Brasil era a 9ª maior economia.

4 Os dados mais recentes do Climate Watch, de 2018, apontam que o Brasil foi responsável por 2,9% das emissões de gases de efeito estufa, considerando as por LUCF. Se excluídas estas emissões, o país respondeu por 2,2% do total daquele ano.

Contamos com uma das matrizes energéticas mais limpas5, com renovados investimentos em energia solar, eólica, hidráulica e biomassa. Somos pioneiros na difusão de biocombustíveis renováveis6, como o etanol, fundamentais para a despoluição de nossos centros urbanos.

5 Segundo a Empresa de Pesquisa Energética, do governo federal, a matriz energética brasileira é formada por 45% de fontes renováveis, sobretudo a hidráulica e a biomassa, enquanto a taxa mundial de utilização de fontes renováveis é de 14%. Considerando os países da OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico), as fontes renováveis de energia representam 9,8% da matriz energética.

6 O Brasil é o segundo maior produtor de biocombustíveis do mundo, atrás apenas dos EUA. Em 2019, de acordo com o relatório BP Statistical Review of World Energy, o país produziu o equivalente a 276 TWh, menos dois que os 450 TWh dos EUA, mas mais do que a produção de toda a Europa (184 TWh).

No campo, promovemos uma revolução verde a partir da ciência e inovação. Produzimos mais utilizando menos recursos, o que faz da nossa agricultura uma das mais sustentáveis do planeta7. Temos orgulho de conservar 84% de nosso bioma amazônico8 e 12% da água doce da Terra9.

7 No ranking de agricultura sustentável do Índice de Sustentabilidade Alimentar, desenvolvido pela Economist junto com o Centro Barilla para Comida e Nutrição, o Brasil aparece na 51ª posição, com nota de 64,2 —a pontuação é uma média ponderada dos indicadores nas categorias de água, solo, emissões e usuários do solo e, quanto maior o índice, mais sustentável é a agricultura. Em primeiro lugar está a Áustria, com 79,9, seguida da Dinamarca, 79,6, e de Israel, 78,3.

8 De acordo com o Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), até agora, cerca de 729 mil km² já foram desmatados no bioma Amazônia, o que corresponde a 17% do referido bioma, ou seja, 83% ainda estão preservados.

9 Apesar da abundância de recursos hídricos, representantes da Unesco, da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) e da Rede Brasil do Pacto Global avaliam que as fontes de captação brasileiras –majoritariamente mananciais– não assistiram a avanços em inovações que pudessem evitar de forma significativa o desperdício. Além disso, a má qualidade da água nas regiões mais pobres, resultado da falta de saneamento básico e higiene, ainda é motivo de preocupação para os especialistas.

Como resultado, somente nos últimos 15 anos evitamos a emissão de mais de 7,8 bilhões de toneladas de carbono na atmosfera10.

10 O REDD+ é um incentivo para recompensar financeiramente países em desenvolvimento pela redução de emissões de gases de efeito estufa causadas por desmatamento e degradação da floresta. Segundo o site da iniciativa, entre 2006 e 2017, o país acumulou 7,4 bilhões de toneladas certificadas.

À luz de nossas responsabilidades comuns, porém diferenciadas, continuamos a colaborar com os esforços mundiais contra a mudança do clima. Somos um dos poucos países em desenvolvimento a adotar, e reafirmar, uma NDC [Contribuição Nacionalmente Determinada] transversal e abrangente11, com metas absolutas de redução de emissões inclusive para 2025, de 37%, e de 43% até 203012.

11 Bolsonaro frustrou parte das expectativas dos americanos, ao não anunciar medidas mais ambiciosas.
Ele repetiu as metas já assumidas pelo país e o compromisso expresso em carta enviada a Biden.

12 Embora tenha mantido o objetivo de redução, o Brasil mudou a linha de base de cálculo sobre as emissões de 2005, que se mostraram superiores com o novo método. Ao mudar a linha de base sem ajustar a meta, o Brasil eleva seu teto de emissões até o fim da década, podendo emitir até 400 milhões de toneladas de gases-estufa a mais do que o previsto no compromisso anterior.

Coincidimos, senhor presidente, com o seu chamado ao estabelecimento de compromissos ambiciosos. Nesse sentido, determinei que nossa neutralidade climática seja alcançada até 2050, antecipando em dez anos a sinalização anterior13.

13 Em sua NDC, o Brasil estabelece a meta, mas diz que a "determinação final de qualquer estratégia de longo prazo, em particular o ano no qual a neutralidade climática pode ser alcançada", depende do funcionamento dos mecanismos financeiros estabelecidos no Acordo de Paris. No documento, o governo afirma que, a partir de 2021, o país precisará de ao menos US$ 10 bilhões ao ano para lidar com os "inúmeros desafios que enfrenta, incluindo a conservação de vegetação nativa e vários biomas".

Entre as medidas necessárias para tanto, destaco aqui o compromisso de eliminar o desmatamento ilegal até 203014, com a plena e pronta aplicação do nosso Código Florestal. Com isso reduziremos em quase 50% nossas emissões até essa data.

14 O desmatamento na Amazônia cresceu cerca de 9,5% de agosto de 2019 a julho de 2020 em comparação com o período anterior, de 2018 a 2019. No total, foram derrubados 11.088 km² de floresta nesse intervalo de tempo. Os dados consolidados do ano são os primeiros totalmente sob responsabilidade do governo Bolsonaro.

Há que se reconhecer que será uma tarefa complexa. Medidas de comando e controle são parte da resposta. Apesar das limitações orçamentárias do Governo15, determinei o fortalecimento dos órgãos ambientais, duplicando os recursos destinados às ações de fiscalização. Mas é preciso fazer mais.

15 Em seus dois primeiros anos de governo, Bolsonaro promoveu um processo de desmonte e esvaziamento dos órgãos responsáveis por cuidar do meio ambiente e das questões indígena e agrária. Como resultado, paralisia generalizada, embates internos, retrocessos, um ministro sob constante pressão para ser substituído —Ricardo Salles, do Meio Ambiente— e uma coleção de números negativos, o que, entre outras consequências, resultou em uma forte degradação da imagem do país no exterior.

Devemos enfrentar o desafio de melhorar a vida dos mais de 23 milhões de brasileiros que vivem na Amazônia, região mais rica do país em recursos naturais, mas que apresenta os piores índices de desenvolvimento humano16. A solução desse “paradoxo amazônico” é condição essencial para o desenvolvimento sustentável na região.

16 A região amazônica tem IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) menor do que o resto do Brasil. Em seus nove estados, o índice fica abaixo de 0,752, enquanto o do Brasil como um todo é 0,765. No entanto, estados do Nordeste têm níveis similares, e Alagoas é o estado com menor desenvolvimento humano, com índice 0,683. Os dados são da plataforma Atlas Brasil, parceria da ONU com o Ipea.

Devemos aprimorar a governança da terra, bem como tornar realidade a bioeconomia, valorizando efetivamente a floresta e a biodiversidade. Esse deve ser um esforço, que contemple os interesses de todos os brasileiros, inclusive indígenas e comunidades tradicionais17.

17 Sinéia Alves, gestora ambiental do Conselho Indígena de Roraima e única brasileira além de Bolsonaro a participar da Cúpula do Clima, avalia que o desmonte de políticas voltadas para as comunidades indígenas no Brasil piorou durante o atual governo. Ainda em campanha eleitoral, em 2018, Bolsonaro repetiu em várias ocasiões sua posição contrária à demarcação de terras indígenas que, para ele, prejudicam o agronegócio e representam uma trava ao desenvolvimento.

Diante da magnitude dos obstáculos, inclusive financeiros, é fundamental poder contar com a contribuição de países, empresas, entidades e pessoas dispostas a atuar de maneira imediata, real e construtiva na solução desses problemas18.

18 Os EUA ressaltaram que o Brasil precisa conter até o final do ano a progressão da destruição da floresta como condição para que os americanos comecem a considerar o envio de ajuda internacional, como Salles e Bolsonaro têm cobrado. O ministro tem afirmado que o país precisa de US$ 1 bilhão para diminuir o desmatamento no curto prazo. Ao menos até agora, o pleito encontra ceticismo em Washington —que prega comprometimento de recursos apenas após a entrega de resultados.

Neste ano, a comunidade internacional terá oportunidade singular de demonstrar seu comprometimento com a construção de nosso futuro comum. A COP26 terá como uma de suas principais missões a plena adoção dos mecanismos previstos nos Artigos 5º e 6º do Acordo de Paris19.

19 Os artigos do Acordo de Paris preveem a transferência dos resultados de redução de emissões de gases de efeito estufa de um país para o outro. Na prática, o texto estabelece um potencial comércio de reduções de emissões. Bolsonaro chegou a ameaçar que sairia do Acordo, mas recuou da decisão e disse a executivos no Fórum Econômico Mundial de 2019, realizado em Davos, na Suíça, que permaneceria no pacto.

Os mercados de carbono são cruciais como fonte de recursos e investimentos para impulsionar a ação climática, tanto na área florestal quanto em outros relevantes setores da economia, como indústria, geração de energia e manejo de resíduos.

Da mesma forma, é preciso haver justa remuneração pelos serviços ambientais prestados por nossos biomas ao planeta, como forma de reconhecer o caráter econômico das atividades de conservação. Estamos, reitero, abertos à cooperação internacional.

Senhores e senhoras, como todos reafirmamos em 9220, no Rio de Janeiro, na conferência presidida pelo Brasil, o direito ao desenvolvimento deve ser exercido de tal forma que responda equitativamente e de forma sustentável às necessidades ambientais e de desenvolvimento das gerações presentes e futuras.

20 Referência à Eco-92, Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, realizada no Rio de Janeiro em 1992. O evento internacional foi um dos primeiros em que os líderes mundiais começaram a discutir as relações entre desenvolvimento e sustentabilidade e, à época, colaborou para a construção da imagem de um Brasil na vanguarda das pautas ambientais.

Com esse espírito de responsabilidade coletiva e destino comum21, convido-os novamente a apoiar-nos nessa missão. Contem com o Brasil.

21 Logo após ser eleito em 2018, pediu que o Brasil retirasse sua candidatura para sediar a Conferência do Clima da ONU (COP25), marcada para o ano seguinte. No evento, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, usou as reuniões bilaterais com países desenvolvidos para pedir dinheiro ao Brasil, enquanto dificultava negociações para criação de um mercado de carbono para incentivar ações de mitigação dos efeitos das mudanças climáticas. O governo Bolsonaro boicotou eventos regionais da ONU sobre mudanças climáticas ao longo de 2019 —cancelou um encontro regional da ONU sobre o assunto que aconteceria em Salvador e não enviou representantes ao Peru para uma conferência sobre gestão florestal e agricultura organizada pelo Pnud (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento).

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